terça-feira, julho 13, 2004

As cavalas

Num dia de Verão tropical - meados de Dezembro - encontrava-me a pescar no Índico. Sentia-me de bem com as pessoas, com as coisas e com o mundo em geral. Lembro-me nitidamente dessa sensação boa de me sentir bem. Talvez o calor, o mar chão e muito azul, o ronronar dos motores a baixa rotação e a darem a adequada velocidade ao barco numa operação de corrico, a liberdade, a ideia que sob o casco existia uma vida ainda com tanto para descobrir quanto tem de voluptuosa beleza e fascínio. Enfim, pensamentos deleitosos de momentos magníficos. De repente vi um tubarão à superfície, quase parado. Conhecendo razoavelmente os tubarões, estranhei. Aproximei-me e vi um tubarão cinzento, enorme, magnífico, numa pose relaxante, quase parado, que pareceu nem dar pela aproximação do barco. Um olhar mais atento revelou-me um enorme cardume de cavalas a cerca de 30 ou 40 metros do tubarão. Juntas, ordenadas, quase perfiladas, estavam viradas para o tubarão que, por sua vez, olhava para elas numa atitude de expectativa. Parei e esperei o que eu pensava vir a ser uma caçada, com o tubarão a nadar vetiginosamente a perseguir a refeição. Eis senão quando as cavalas avançam em simultâneo, como que sob ordem de comando, na direcção do tubarão que, impávido, se limitou a abrir a boca e esperar que algumas dezenas delas entrassem pela boca guarnecida de dentes agudos e afiados. Foi um espectáculo inolvidável... ver um exército de cavalas a nadar deliberadamente em direcção ao tubarão e proporcionar-lhe parte do seu efectivo como alimento, num heróico sacrifício de sobrevivência. Quando pensava que tudo estava terminado, o cardume de cavalas girou 180 graus, fez novo compasso de espera até que o tubarão se virasse também para elas e aí vai nova carga de "cavalaria" a depositar mais uma generosa quantidade de soldados no bojo enorme do inimigo. Incrédulo, interroguei-me sobre quantas "cargas de cavalaria" estariam ainda para acontecer, mas foram só duas. O tubarão, aparentemente saciado foi-se embora. As cavalas, cumprida a missão, dispersaram em sentido oposto. Uns dias mais tarde, em conversa com um eminente biólogo marinho da Universidade de Durban, fui elucidado que aquilo que eu vira teria sido um episódio não raro na convivência de cavalas com tubarões. As cavalas, sentindo a proximidade do predador, organizam-se e heroicamente lançam-se na boca do inimigo, sabendo que assim terão menos baixas do que sofrendo um ataque directo do inimigo. Nunca mais me esqueci deste episódio (entre dezenas de episódios magníficos e sempre diferentes que o mar alto nos oferece)e ainda hoje me interrogo sobre a razão de a Natureza ter criado cavalas e tubarões...

1 Comments:

At 8:20 da tarde, Blogger Passada disse...

Este por excelência toca-me por ter vivido outras tamanhas maravilhas deste índico tão quente,recheado duma vida marinha, quiça das mais ricas dado que de tudo temos por aqui, salvo os deliciosos salmonetes do portinho da arrábida, desde a migração do tubarão baleia, fenomenais jamantas elegantes que sobrevoam este mar, às deliciosas pescarias. Sei, sei tão bem sentir o cenário descrito, mas prometo-vos que meu pai foi brando não só na descrição mas também exímio na escolha do episódio per si caricato e se quisermos fazer uma pequena analogia à própria sobrevivência humana, podemos então deliciar e encontrar grandes semelhanças. Adotamos e imprimimos uma forma de o transmitir, partilhar, analisar, referênciar, criticar...até acharmos que somos muito diferentes da espécie animal. Mas não me deixem escorregar nem fugir ao sumo do índico. Ele é envolvente, mágico, cheio de cor quente, cheiroso e pode maltratar-nos afincadamente. Talvez um dia este meu pai vos conte e partilhe um outro momento excelente deste índico, quando perdeu o seu barco num canal que se chama de Santa Maria e foi o índico que lho devolveu como que a ter dó dos largos kilómetros de mar que o separavam da sobrevivência! E como falamos de sobreviver, algo nas deliciosas pescarias ao corrico, com termus de café com cremora e por entre anedotas e fofocas, lá se iam pescando barracudas e charéus, cujo final tinha muito pouco de sobrevivente pois os mesmos redimiam-se às "aspirinas" (comumente traduzido para marteladas na cabeça do peixe para não sofrer muito antes de atirado ao alçapão)e que me custava tanto ver, mas que rápidamente esquecia quando via o filete untado com molho de limão e piri-piri no prato.

 

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