segunda-feira, abril 16, 2007

Os humoristas do regime


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O cartaz dos Gatos Fedorentos foi saudado encomiasticamente como uma nova forma de civismo, como representativo de uma acção política eficaz, com novidade e criatividade. As razões que são dadas têm a ver com o poder do humor, do riso "castigador dos costumes". Penso, no entanto, que essa não é a questão essencial... Duvido. Duvido da sua eficácia, duvido da sua vantagem, medindo-a em função dos objectivos explícitos dos seus autores e da mensagem pública que pretendiam transmitir. Duvido que, neste caso, haja riso suficiente para castigar os costumes. Bem pelo contrário, nem riso, nem castigo.
O "programa" de Molière que usou a citação de Jean-Baptiste Senteuil, Castigat ridendo mores, foi exposto no prefácio do Tartufo e é pela sua natureza universal: punir os vícios pela sátira, pelo "medo do ridículo".

«Les plus beaux traits d'une sérieuse morale sont moins puissants, le plus souvent, que ceux de la satire; et rien ne reprend mieux la plupart des hommes que la peinture de leurs défauts. C'est une grande atteinte aux vices que de les exposer à la risée de tout le monde. On souffre aisément des répréhensions; mais on ne souffre point la raillerie. On veut bien être méchant; mais on ne veut point être ridicule.»


Uma coisa é fazer uma capa do Inimigo Público, ou um cenário de um sketch televisivo, outra é um cartaz numa praça pública, ao lado de outro cartaz a que pretende servir de contraponto, instalados no terreno de uma questão política por excelência - a emigração - e que, por o ser, divide interesses, percepções e preconceitos. A transposição de uma linguagem como o humor de um meio controlado pelos seus próprios termos espectaculares - visto que a eficácia dos Gatos Fedorentos vem essencialmente do texto representado e não da escrita - para o espaço público de uma praça, onde já praticamente ninguém "faz" política, é uma mudança qualitativa. O humor na Praça do Marquês de Pombal não transporta consigo os mesmos códigos do "espectáculo" original e tem efeitos perversos, ruído, incontroláveis pelos seus autores. É que do outro lado está o cartaz do PNR.É verdade que nem o PNR, nem os Gatos Fedorentos fizeram os seus cartazes para os automobilistas do Marquês de Pombal, mas sim para a comunicação social. O problema é que o cartaz do PNR foi um grande sucesso em todos os palcos e o dos Gatos Fedorentos comporta uma ambiguidade que o torna bastante menos eficaz. Comecemos pela desproporção de meios. O cartaz do PNR é o fruto de uma actividade minoritária e sitiada, feita no limbo da política portuguesa, com fracas possibilidades de ultrapassar os muito pequenos círculos de adeptos e fiéis da extrema-direita. Em condições normais nunca chegaria às páginas da imprensa e muito menos aos ecrãs da televisão a não ser em reportagens sobre os seus "perigos", feitas de forma claramente hostil.O cartaz solitário do PNR foi, por si só, uma grande publicidade e completamente conseguido nas suas intenções: fazer propaganda do partido e do seu líder. Na verdade, é ilusório pensar que o efeito de eficácia do cartaz fosse a sua mensagem antiemigrantes. Não, o efeito de eficácia do cartaz é dizer que aquele grupo e aquele senhor da fotografia têm a coragem de dizer aquelas coisas, "que muitos pensam", sobre a emigração. Ora este efeito foi plenamente conseguido, a contrario da tendência dominante da comunicação social. O PNR só tirou vantagens de colocar o cartaz pela visibilidade incomodada que obteve, alimentando-se das reacções que provocou.Pelo contrário, o cartaz dos Gatos Fedorentos vem desse mainstream, é mais uma manifestação desse mainstream comunicacional. Os Gatos exprimiram aquilo que toda a gente acha bem pensar sobre a emigração, mesmo que depois o sinta bastante menos do que o pensa. A sua mensagem passa não pelos interstícios, onde tudo corre com mais força, como acontece com a do PNR, mas no amplo leito de cheia de um rio de planície. É por isso que o efeito de humor não é subversivo, para usar esta palavra, prega aos convencidos.Por outro lado, quando o cartaz dos Gatos foi lá colocado ao lado, o do PNR já se encontrava vandalizado, coberto por jactos de tinta que pretendiam cobrir as frases mais polémicas e a cara do dirigente do PNR. As pinturas de tinta nos olhos são uma metáfora do acto de cegar, transmitem uma imagem de violência, contrariamente, por exemplo, aos bigodes ou aos narizes de palhaço (que apareceram na última campanha eleitoral) que pretendem apenas ridicularizar. Ora aqui também ganha o PNR, visto que a imagem vandalizada do cartaz reforça subjectivamente a sua imagem de perseguidos, mostra uma intolerância qualquer de que eles são vítimas.
O cartaz limpinho dos Gatos face ao cartaz vandalizado do PNR resulta muito menos poderoso como mensagem. É verdade que a comunicação social não deu relevo, como devia dar, à vandalização do cartaz do PNR, talvez percebendo que a força simbólica daqueles olhos perfurados favorecia o PNR. Aqui a eficácia do cartaz do PNR continuou, é certo que apenas para os automobilistas, enquanto a retirada do cartaz dos Gatos pela CM Lisboa, por não ter cumprido os requisitos legais, suscitou críticas, mas nenhum sobressalto da opinião pública. O efeito de intolerância e de vitimização esteve sempre do lado do PNR. O segundo cartaz do PNR colocado há poucos dias reforça essa imagem com a frase "As ideias não se apagam / Discutem-se", o que mostra como o PNR percebeu bem como explorar o sucesso do primeiro cartaz.

Percebeu e depois deixou logo de perceber. Quando colocou lá doze musculados protectores, passou de agredido para potencial agressor. A inteligência parece ter-se esgotado depressa no PNR.

O problema não está, como é óbvio, no facto de os Gatos Fedorentos, enquanto grupo de humoristas, fazerem política pura e dura, em pleno espaço público. Nem sequer penso ser comparável o acto de fazer este cartaz com os sketches que foram criticados como "políticos" na última campanha referendária sobre o aborto. Só que a intervenção dos Gatos Fedorentos será agora julgada pela sua eficácia política e não pelo riso que provoque. Este palco suplementar implica um risco acrescido de trivialização da imagem do grupo, acentuada igualmente pelo peso da publicidade, multiplicando actos de humor sucessivos que, a uma dada altura, tem uma pérola de humor para dez pedras de meia graça esforçada. Foi este caminho que levou esse outro humorista genial, Herman José, à crise actual.Mas o risco maior é o de as pessoas começarem a identificar uma orientação política explícita na actuação do grupo. Porque, depois, começam a perguntar-se por que razão é que eles acham o PNR, Portas e Lopes ridículos e Louçã não. Ora esta pergunta não tem humor nenhum, porque os maus "costumes" que o riso "castiga" estão bastante bem distribuídos em todos os lados da política.

(
JPP no Público de 14 de Abril de 2007)
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1 Comments:

At 10:30 da tarde, Anonymous daniel tecelao disse...

Diz o povo;Quem o feio ama,bonito lhe parece!!!

 

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