quarta-feira, julho 13, 2011

Dótores



[4350]

Saí do escritório mal disposto. O dia correra mal. Cheguei ao carro e irritei-me. O carro estava coberto por uma desusada camada de pó que me fez odiar carros pretos. Entrei e arranquei. A TSF dizia uma barbaridade qualquer que me provocou azia. Mudei para a Renascença que dá terços e novenas àquela hora, mas já tinham acabado e emitia uma repousante «chuva de prata» da Gal que me reconciliou um bocadinho com o mundo. E de tal maneira que, ao descer a João de Deus e após quase parar para deixar passar um homem idoso meio descuidado a atravessar a rua, comecei a sentir-me melhor. O portão principal do Jardim da Estrela reconciliou-me com o Universo e foi já razoavelmente invadido por aquela sensação de homem justo que parei o carro antes da passadeira de peões entre a paragem do eléctrico e o portão do jardim. O sol batia de frente e a minha reconversão ao bem-estar era de tal maneira que até gostei. Gostei do brilho, do calor e quase achei graça ao facto do vidro dianteiro estar muito sujo com o pó que o cobria. Reconciliado com a vida, com a Gal ainda a cantar, o sol a bater, o jardim à direita, a magnífica fachada da Basílica à esquerda, esguichei o vidro para o lavar. Gostei particularmente de perceber que o líquido continha uma espuma eficiente e perfumada, o que indicava que a revisão recente ao carro tinha sido cuidada. Definitivamente rendi-me à vida que é bela e eu é que nem sempre caibo nela.

Pensei cedo demais. Neste preciso momento ouvi um piiiiiiiiiii estridente atrás de mim. Um taxista fazia gestos estranhos tipo «ande para a frente»… mas eu tinha carros em bicha à minha frente. É certo que tinha o espaço da passadeira e nesse momento não passava ninguém, mas naquele sítio está sempre gente a passar. E eu percebi, então, que o taxista apoplético atrás de mim, achava que eu estava a desperdiçar seguramente uns três metros de via, eu devia andar para a frente porque não estava a passar ninguém. Pensei em fazer-lhe um manguito pelo retrovisor, mas reparei que tinha a mão ocupada a premir ainda o dispositivo do lavador de vidros, quando…

- pumpumpumpumpumpum (um som semelhante a uma mula aos coices, tipo cascos almofadados, no vidro do lado direito).

Olhei para o lado, estupefacto, meio atordoado, e vejo outro taxista (reparei depois que há ali uma paragem de táxis), metro e meio de gente, barba de três dias e bigode daqueles que dão a ideia de cheirarem a azedo, olhos pequeninos envolvidos por uma espécie de pálpebras inchadas e ar de besta cavalar abortada num campo de urtigas, esbracejando e berrando. Abri o vidro com a mão esquerda (a direita continuava premindo o esguicho…) e perguntei:

- O que se passa?
- Que se passa? Então bócê não bê o que está a fazer ao meu carro, c…?
- Fazer ao seu carro? Bati-lhe? Que aconteceu?
- Num bateu nada porra, bocê está, a molhar-me o carro todo, não está ber?

Reparei então que o esguicho do meu carro, que tem quatro saídas, realmente lhe molhava o táxi estacionado, já que estava um dia particularmente ventoso.

- Ó amigo, desculpe lá, tenha calma, não reparei que…
- Desculpa o c…. então beija lá cuméque o meu carro está, c…
- Ó homem, vá lá tomar os comprimidos, você está é nervoso.
- Nervoso o c… bocê bê o que fez ao meu carro? Bocê é mas é um lorpa, c…
- Olhe lá, lorpa era o seu segundo hiperbólico ancestral em linha directa com o exemplo acabado das leis de Mendell de que você é um infeliz exemplo.
- Olhó dótor, dótor do c… este país está cheio de dótores, é por isso que este país…


As palavras foram ficando para trás, mais pequeninas, até se tornarem inaudíveis à medida que, entretanto, fui arrancando e a figura grotesca do homenzinho continuava aos pulos a chamar-me nomes. Vacilei de novo entre a irritação e o bem-estar de que estava invadido quando esguichei o lavador de vidros e acabei por ficar bem disposto outra vez. É a vida, dizia o Guterres. Às vezes é chata mas, aqui e ali, tempera-nos o astral.

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7 Comments:

At 10:40 da manhã, Blogger Pedro Barbosa Pinto disse...

Ó Dótor! E não mandava a boa educação que, antes de arrancar, o mandasse... conversar com o colega que buzinava atrás de si?

 
At 3:52 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Pedro Barbosa Pinto

Ó Pedro se eu mandasse o homem para algum lado, desconfio que não seria falar com o outro ... :)

 
At 9:02 da tarde, Blogger Dulce Braga disse...

Sorte tua que não lhe molhaste o bigode azedo!:)))*

 
At 3:42 da tarde, Blogger LurdesMartins disse...

:)

Beijinhos

 
At 7:59 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Dulce Braga

Para a próxima não escapa. Plano B, levo um folhadinho de maçã e esfrego-lho no bigode :)*

 
At 8:00 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Lurdes
Ora aqui está um comentário conciso :)))))
Beijinho, Lurdes!

 
At 1:13 da manhã, Blogger Dulce Braga disse...

Uma heresia sem tamanho esse plano B!:)*

 

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