sábado, abril 07, 2012

Os meus carros (7-A) VW Buggy

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No princípio de 74 fiz uma extravagância. Encomendei um beach buggy cor de vinho a uma oficina sul-africana em Cape Town, novinho. Motor VW e customized.

O buggy chegou nos fins de Março de 74. Levei-o apenas duas vezes para o escritório e uma vez à Ilha de Luanda. Não cheguei, como me propunha, acelerá-lo pelas areias das Palmeirinhas e do Morro dos Veados. O 25 de Abril dominava toda a minha actividade e na maior parte dos dias eu esquecia mesmo que tinha um buggy.

Poucos meses depois do 25 de Abril, também eu me fui embora, como milhares de outros. Depois de «arrumar» os últimos pormenores da retirada dirigi-me ao aeroporto no buggy (era já o único meio de locomoção de que dispunha) e estacionei-o cuidadosamente. Era de noite. A família esperava já há dois dias no aeroporto pejado de gente, dentro e fora das instalações. Não sabia bem quando partiria, mas sabia que dali já não iria a parte nenhuma que não fosse a bordo de um avião. Saí do buggy e olhei-o, com uma sensação estranha, aquela sensação de quando estamos vendo um filme e levamos tempo a perceber o enredo. Mas olhei para o carro e, sim, lembrei-me dos carros que tinha tido até essa altura. Afinal pouco tempo decorrera ainda desde o Mini até ao Buggy. E achei, de novo, que sim, não percebia ainda o enredo do filme que estava a viver. Percebi, pelo menos o suficiente, para olhar para o céu, baço de cacimbo, e achar que a vida não parava ali mas que, no mínimo, me deveria já algumas explicações.

Já a meio do percurso para o aeroporto, percebi que tinha ainda as chaves do carro comigo. Lancei-as para longe, para trás de mim. Não olhei sequer. Segui em frente e pensei que pelo menos eu seria uma das raras pessoas do mundo que poucos dias depois de ter pago pela compra de um brinquedo caro, o abandonava, para sempre, num parque de estacionamento.
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5 Comments:

At 6:33 da tarde, Blogger MargaridaCF disse...

Gostei muito de o ler. O meu pai também "atirou para trás das costas" as chaves de vinte e muitos anos de vida que lá deixou. Não sei se tem seguido com o mesmo interesse que eu toda a estridência criada à volta de um livro de Dulce Cardoso chamado "O Retorno". Em entrevistas da autora tenho-lhe percebido toda a indignação pelo modo como, segundo a própria, os "retornados" foram recebidos em Portugal. Hotéis de piscinas sem água. Alguma discriminação nas escolas.Subsídios parcos.
Tenho, desde há uns anos, intermitentemente, conversado e registado testemunhos de pessoas, não "retornadas" mas nascidas em Angola, que vieram para Portugal em fim de adolescência. Nenhuma delas me afirmou ter sentido algum tipo de discriminação. Nem nas universidades - embora alguns tenham sido obrigados a repetir cadeiras e/ou exames - nem nos locais de trabalho nos quais ingressaram.
Todavia, todos, sem excepção, têm um incomensurável desgosto pela forma como os que lá ficaram - aqueles que antes de 11 de Novembro de 1975 tinham BI português mas lhes faltava um tetravô nascido em Portugal- foram barbaramente abandonados. Não se dá conta do que foi viver-se o colapso de todo o sistema de administração pública e privada que existia em Angola se não se ouvir os testemunhos dos que por lá ficaram até às últimas consequências. Os que retornaram miseráveis, tiveram tecto e comida e médicos assegurados. Os que ficaram, os milhares que lá ficaram, esses é que são dignos de estridências indignadas.

 
At 8:51 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

MargaridaCF

O post é de uma série sobre os carros que tive. Inevitavelmente vêm à ideia estas questões de que a Margarida fala e com as quais me identifico perfeitamente.

 
At 2:08 da tarde, Blogger MargaridaCF disse...

Pois, escrevi de impulso e devo confessar que depois me perguntei se não fui inapropriada.(até pensei apagar o comentário). A metáfora das chaves destruíu a espécie de carapaça que me defende deste assunto delicado e doloroso que foi o futuro/passado da minha terra.Peço que me desculpe se considera fora do contexto... Apague-o. Eu não sei, ainda hoje, apagar comentários :(
E devo acrescentar que ao relê-lo concordei com a velha máxima: 'os carros revelam-nos os homens'... Por estes posts fiquei a saber mais do seu percurso de vida do que as leituras, quase diárias, que fui fazendo desde há nem sei quantos anos . :. Bem haja sempre pelos bons momentos.

 
At 6:57 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

MargaridaCF

Inapropriado? Um comentário seu? Margarida, nem isso lhe passe pela cabeça. Eu percebi bem que se sentiu arrebatada pelo episódio de eu lançar a chave fora... mas, se vir bem, não é essa simples aparentemente aparentemente fora do contexto? Mas não... aconteceu, teve a ver com o meu carro 7-A... ficou. E muito obrigado pelos seus comentários gentis, como sempre. E, sim, Eu sei que me lê muitas vezes, basta consultar o meu site meter... :)))

 
At 12:15 da tarde, Blogger MargaridaCF disse...

Já ontem tinha deixado aqui os meus agradecimentos. Esfumaram-se. Repito: Obrigada, tranquiliza-me.
...e esqueço-me sempre da eficiência do site meter...
(e porque é que hoje vejo pequenos "caixotes do lixo"?Juro que nem sempre aparecem)

 

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