quarta-feira, maio 30, 2012

Sonhos

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Sempre gostei mais de voar de dia. O avião descola e é tiro e queda. Ainda o pássaro não se nivelou com o terreno e eu percorro já a vereda dos sonhos.

Foi no trajecto Joanesburgo - Luanda. Puxei a cortina para baixo e deixei-me roubar do mundo dos despertos. E um sonho começa. Pressinto-me num lugar elevado, dificilmente descritível, olhando para baixo, na vertical, e vejo-me a mim próprio caminhando numa praia extensa. Alguém me acompanha, em silêncio, amparando-se em mim, caminhando a meu lado. Eu sei que falávamos ambos em silêncio. Olhávamos em frente e, ao fundo, o mar murmurava uma melodia suave e envolvente e nós continuávamos caminhando. O sonho dá-me então a sensação estranha de saber e não saber quem ia comigo no areal e gera em mim uma vontade estranha de dizer-me a mim próprio quem era. Mais precisamente, apetece-me gritar, chamar o mundo e explicar quem éramos e a razão porque caminhávamos o areal extenso e morno na direcção do mar que, à medida que andávamos, parecia cada vez mais distante. E é na turbulência do desejo reprimido de gritar ao mundo quem éramos que a figura que me acompanhava pega a minha mão, vira-se para mim e me envolve num abraço terno, muito suave, mas firme. Suspendemos a caminhada e mantivemos o abraço por um momento sem fim. Sem falar, apenas sentíamos o corpo estremecer pela indizível sensação de pertença e protecção mútua que nos aconchegava.

De repente, abri os olhos. Sem saber porquê, percebi que tinha acordado. Olhei distraidamente para o computador de bordo, reparei na linha verde que representava a trajectória do avião e percebi que estava à vertical do Kuito, antiga Silva Porto. Tínhamos deixado Menongue para trás, Luanda aparecia mais acima e lá estava o Kuito, rigorosamente por debaixo de nós. E se dúvidas houvesse, o comandante fez uma pequena alocução aos passageiros, informando que dentro de cerca de uma hora aterraríamos no aeroporto 4 de Fevereiro e que naquele momento sobrevoávamos a cidade do Kuito.

Semi-desperto e intrigado, tirei até uma foto. Que saiu medíocre por causa do flash ter disparado e tornado quase ilegível o nome da cidade. Tudo por causa daquela luz difusa, quase tão difusa como o sonho que tinha terminado ali, no coração de Angola, mas ainda assim suficientemente nítido para dele me poder lembrar em cada pormenor e de, à minha maneira, achar que tudo na vida tem um fio condutor de uma lógica irrecusável. Em breve estaria a aterrar.
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