terça-feira, abril 08, 2014

Nada como tratar do palato, em tempos de cretinismo militante


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Sentei-me e fui atendido com a familiar gentileza de quem almoça naquele restaurante quase diariamente. O prato do dia era dobradinha com feijão branco, um prato que a cozinheira executa com particular esmero e apresenta com apreciável aprumo. A dobradinha é mesmo dobrada cortada em pedacinhos, bem emulsionada com o feijão branco em ponto óptimo de cozedura, refogo e tempero, servida numa travessinha rectangular, com dimensões adequadas a que não se encha a toalha de nódoas de molho, tudo muito apetitoso, muito salpicado de salsa, muito regalo à vista, à pituitária e à sensação incomparável de se consolar o palato.

Mas a dobradinha tinha acabado… fui almoçar tarde e o Sr. Gato (o homem chama-se Gato, vão por mim) torcia-se de embaraço por não me ter guardado um pouco do prato do dia. Desculpas digeridas, pedi uns chocos grelhados. Em menos de vinte minutos, foi-me disposta uma travessinha com dois chocos sem tinta, tamanho de um punho de homem, impecavelmente grelhados e almofadados por uma salada fresca de tomate cebola e alface. Ao canto da travessa esperavam a deglutição três meias batatas cozidas, no ponto, nem cruas, nem desfeitas. Trazido o galheteiro, temperei os chocos com um azeite que dizia qualquer coisa, virgem, com um gosto que me permitiria adivinhar-lhe o passaporte fosse onde fosse, um vinagre de vinho natural, longe das modernices balsâmicas dos vinagres que pululam por aí, e degustei dois exemplares fabulosos de cefalópodes do nosso Atlântico. Sabiam a mar da Ericeira, a textura era inimitável e só de olhar para eles, loiros e cheirosos a maresia, o apetite aumentava. As batatas sabiam a terra da Lourinhã e disfarçavam a qualidade banal do tomate, da alface e da cebola, obviamente colhidos numa qualquer estufa do oeste onde os legumes crescem cada vez mais depressa e sabem cada vez a menos seja o que for.

Uma opípara refeição. E, todavia, todos os ingredientes eram triviais e sem grandes artes gastronómicas. No fundo, um grelhado e um cozido, pedindo meças a um qualquer prato sofisticado de haute-cuisine.

No fim, um arroz doce impecável de textura, gosto e aparência, rematou o repasto. E pensei que realmente deve haver uma qualquer razão para que nos gabemos de ter o melhor peixe do mundo e, ainda, em alguns lugares, os melhores legumes do mundo. Já comi choco em muitas partes do globo, até calamari steak já comi num restaurante de luxo em Rosebank (um subúrbio posh de Joanesburgo) e batatas, não dá sequer para enumerar. Mas degustar dois chocos como degustei hoje, acompanhados por tão virtuosas solanáceas é uma bênção dos céus que deve ter caído neste pedaço do planeta, que nós nos esforçamos tanto por estragar.

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3 Comments:

At 7:09 da tarde, Blogger MargaridaCF disse...

coisas muito boas ....

 
At 5:58 da tarde, Blogger ana disse...

eu gosto de dobrada com grão e choquinhos com tinta

 
At 10:44 da tarde, Anonymous jojo disse...

Até que enfim, um cretino que se reconhece.

 

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