sexta-feira, maio 16, 2014

A angústia de não gostar de pato


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Devo ser o único português que não gosta de arroz de pato. O arroz de pato é um prato trivial que consiste em fiapos de um marreco apanhado distraído e desengonçado à saída da capoeira, misturados e dispersos por um arroz previamente refogado e cozido (parece que na água que cozeu o bicho), após o que se leva a coisa ao forno. O resultado é um arroz de forno com os tais fiapos do palmípede, mas que podiam ser de galinha, de pavão, perdiz, peru ou codorniz, qualquer deles uma solução mais adequada que o deselegante marreco. Enfeita-se depois com umas rodelas de chouriço ou enchidos afins, o que me leva a perguntar que se os enchidos forem de boa qualidade, para que é que eu preciso do pato? Porque, basicamente, o principal defeito do arroz de pato é que tudo aquilo sabe… a pato e o pato sabe mal. Sabe a capoeira, a cocó de galinha mas produzido por patos, a fénico, a penas (a penas, valha-me Deus…), enfim, sabe a tudo o que um bom galináceo, por exemplo, não sabe.

Mas os portugueses adoram arroz de pato. Eu diria até que sacralizam o prato, como se fosse um manjar dos deuses ou o resultado de um segredo gastronómico mais profundo que a receita do xarope da Coca-Cola ou a origem do nome Lucky Strike, dos famosos cigarros americanos. Mesmo a pedir o prato no restaurante, não se pede de qualquer maneira. Há uma postura mais ou menos reverencial, uma certa solenidade, mesmo, até na encomenda, após o que se comenta depois com os acompanhantes a delícia do manjar.

Por mim, acho que os portugueses gostam de arroz de pato pelas mesmas ínvias razões que os levam a odiar o ar condicionado (tem ácaros e inflama a laringe). A água gelada (pára a digestão e inflama as amígdalas). O frio do fim do dia, quando a temperatura baixa dos vinte graus e correm a buscar um agasalho. A fazer casas com janelas liliputianas num país abençoado por mais de três mil horas anuais de sol (esta, não sei bem porquê). Ou a não dispensar o telemóvel à mesa para se telefonarem alegremente uns aos outros entre duas garfadas de arroz de pato.

São os segredos indecifráveis das nossas idiossincrasias. Mas vistas bem as coisas, o culto do americano e insípido peru dos thanks giving days não é muito diferente do nosso arroz de pato.

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1 Comments:

At 9:09 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

comparar o arroz de pato ao peru americano é um non sense

 

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